sexta-feira, 11 de julho de 2014

Tive muita sorte com as orelhas de meus livros. Sempre pude contar com grandes escritores apresentando poemas meus ou traduções que fiz. E o Nelson de Oliveira é um desses escritores incríveis que simplesmente tiraram de ouvido a orelha do livro! Ele fez o texto de ATRÁS DAS LINHAS INIMIGAS DE MEU AMOR, a antologia poética do Leonard Cohen. Sente só:

Os poemas de Leonard Cohen, a grande maioria sobre o amor e o sentimento do sagrado, foram escritos com o indicador numa infinita vidraça. Numa vidraça embaçada pelo hálito do poeta. Ou pelo vapor que escapa das xícaras. Ou pela transpiração dos amantes. Lá fora chove, aqui dentro está abafado e essa vidraça não se abala. Riscada de linhas úmidas, ela permanece sempre onde está, separando do frio fabuloso o tempestuoso gozo.
Talvez os poemas de Leo Cohen não tenham sido originalmente escritos nessas circunstâncias. Talvez a vidraça, a chuva e os amantes sejam apenas fruto da minha imaginação. Mas, já que minha imaginação foi estimulada pelos próprios poemas, então os seus frutos são tão legítimos quanto os da mais disciplinada razão. Sendo assim, fica valendo minha versão dos fatos, mesmo sendo ela pura invenção ou inversão dos fatos. Os poemas justificam toda essa liberdade.
Muita gente não conhece esses poemas. Mas conhece bastante bem a voz grave, áspera e vagarosa — afinada por cinqüenta mil cigarros — desse compositor e intérprete de dezenas de canções sombrias e melancólicas. Canções já clássicas, como Famous blue raincoat, The future e Waiting for the miracle. Canções que, como certos poemas aqui reunidos, tocam o Oriente, as drogas, as portas da percepção, o corpo da mulher amada, o céu e o inferno. “Suas canções cada vez se parecem mais com orações”, afirmou Bob Dylan. Os poemas também se parecem bastante com orações.
Muita gente não conhece esses poemas, essa sinistra liturgia. Mas agora vai conhecer, graças ao cuidadoso trabalho de seleção e tradução de Fernando Koproski. O mesmo Koproski que tempos atrás selecionou e traduziu ótimos poemas do Bukowski. Ótimos poemas que muita gente não conhecia. Do mesmo Bukowski desgrenhado e amassado que torcia o nariz para o elegante e alinhado Cohen. Guarda-roupa à parte, o americano e o canadense se entendem muito bem nos terrenos baldios da lírica.
Koproski recolheu vários poemas da vidraça embaçada e os trouxe pra cá. Para o calor dos trópicos. Para as cidades do verão sem fim. Que subitamente esfriaram, acinzentaram, apagaram os olhos externos para acender os internos. A nuvem de gafanhotos do Credo desceu sobre os edifícios. A montanha de Alguns homens mudou de nome e de dono. O ouro e o marfim d’As flores que deixei no chão taparam os buracos no asfalto. As mágoas e as carruagens d’A Rainha Vitória e eu atrapalharam o trânsito.
Outros fenômenos estranhos, irônicos e eróticos estão ocorrendo. Afinal os anseios carnais e espirituais desse libertino encantador foram trazidos pra cá quase sem aviso. Como eram trazidas, há milênios, as revelações violentas dos velhos profetas.

Nelson de Oliveira

http://www.livrariascuritiba.com.br/atras-das-linhas-inimigas-de-meu-amor-aut-parana,product,LV220048,3406.aspx


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